Por Victor Caparica
A cientwista de hoje tem duas coisas em comum, além do gênero feminino, com a cientwista Rachel Carson.
Primeiro, ambas descobriram uma ameaça seríssima e alertaram o mundo antes que estragos ainda piores ocorressem. Segundo, ambas enfrentaram uma guerra contra corporações poderosas para sustentar suas convicções e fazer o que precisava ser feito.
Frances Kathleen Oldham nasceu em 24 de Julho de 1914 na ilha de Vancouver, no Canadá. Desde bem jovem a moça demonstrou uma enorme aptidão para os estudos e um grande interesse por farmacologia.
Ela se graduou na McGill University, e em seguida foi trabalhar com pesquisa farmacêutica na University of Chicago. Chegando lá, porque sempre tem percalços sexistas nessas histórias, os caras disseram que achavam que o currículo “Frances” era de um homem. Mas ela já tinha sido contratada, então ficou. Não há como calcular quanta sorte há nesse fato. Sorte nossa.
Ela trabalhou na pesquisa que relacionou o uso do solvente Dietilenoglicol com várias mortes e iniciou regulamentações sobre remédios. Foi quando ela iniciou seus estudos e interesses em substâncias teratogênicas, que causam má-formação de fetos.
Nos anos 40, ela investigava formas de sintetizar uma cura para a Malária, e fez uma descoberta fundamental no processo. Ela descobriu que alguns medicamentos, contrariando o conhecimento médico da época, conseguiam atravessar a barreira placentária.
A vida seguiu em frente, ela conheceu no processo o Dr. Kelsey, cuja importância nessa história se resume ao sobrenome, e teve filhos.
Até que, nos anos 60, a Dra Kelsey foi convidada pela FDA (Food and Drug Agency) para revisar novos medicamentos. E uma de suas primeiras tarefas foi avaliar a confiabilidade de testes de segurança para um calmante analgésico receitado para gestantes. Um remédio com nome comercial Kevadon” cujo princípio ativo se chama Talidomida. A droga já tinha sido testada no Canadá e em 20 países europeus, e era considerada de uso seguro para gestantes, com razoável documentação.
Só que a Dra Kelsey tinha lido um estudo britânico sobre efeitos colaterais no sistema nervoso, e queria mais investigações. Ela precisou travar uma batalha desigual com o fabricante do Kevadon, que insistia ter evidências científicas da segurança do remédio. E, contra pressões de todos os lados, ela impediu que a FDA aprovasse o uso da Talidomida nos EUA até estudos mais completos serem feitos.
Nos anos seguintes, inúmeros trabalhos surgiram pela Europa conectando nascimentos de bebês com má-formação ao uso da Talidomida na gestação. Ficou completamente demonstrado que a Talidomida podia atravessar a barreira placentária e afetar o desenvolvimento do feto. A doutora apareceu na primeira página do Washington Post de 15 de Julho de 1962 como uma heroína nacional.
Uma das conseqüências dessa divulgação pública foi a aprovação unânime e imediata da Emenda Kefauver Harris, ainda em 1962. Essa emenda exigia que as drogas fossem amplamente testadas e tivessem eficácia comprovada ANTES de serem inseridas no mercado. Sim, é isso mesmo, antes desse evento não havia tal lei obrigando laboratórios a testarem se o remédio é mesmo seguro. Nem obrigando os laboratórios a relatar toda e qualquer reação adversa observada em pacientes onde a droga fosse testada.
Ela trabalhou na FDA cuidando de protocolos de segurança para novos medicamentos até os 90 anos de idade. Como é de se esperar, não caberiam aqui nem metade dos prêmios e homenagens que ela recebeu em vida por suas contribuições à ciência.
Hoje a FDA concede anualmente o Prêmio Dr Frances Oldham Kelsey de Excelência em Segurança de Medicamentos.
A doutora Frances Kelsey faleceu na tarde de ontem, 8 de Agosto de 2015, aos 101 anos. Deixou como legado toda uma cultura de testes e verificações de segurança que hoje evita novas catástrofes científicas como a da Talidomida.
E assim o #cientwistas se despede dessa mulher extraordinária. Bom descanso, Dra Kelsey, e obrigado pelas horas de estudo.
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